espelho, espelho meu

    no auge das minhas ilusões, noto que além de criar situações hipotéticas da realidade, estou sempre construindo versões minhas que não saíram do papel, variantes da minha personalidade que reagiriam diferente às coisas da vida, aceitariam propostas outrora ridículas, seriam possíveis vilões de BBB ou atletas regionais. por mais que essas versões nunca cheguem à vida real, hora e outra elas aparecem cá nos meus pensamentos pra dar um oi e dizer como as coisas aconteceriam nas suas dimensões e as possíveis consequências disso.

    uma versão minha ganhou na mega-sena. não ganhou o prêmio, mas teve a sorte absurda de receber dinheiro fazendo o que gosta. num amistoso de vôlei despretensioso, um olheiro viu nesse variante (que é 5 centímetros mais alto) uma possível vitória na próxima liga nacional. depois de muito treino e muita bolada na cara, hoje ele acorda às 7 da manhã pra fazer natação. o funcionário do time deixa a refeição pronta junto com o copo de whey pra ele fora da piscina e ele fica muito gato saindo molhado e de sunga. ele entendeu que ser top não é só para héteros e tenta - muito - ser influencer no instagram. não consegue sair muito porque a rotina é pesada, mas não precisa se preocupar já que metade da torcida tem crush nele e até contas de fã ele coleciona.

    outro lucas cozinha como ninguém. ele percebeu que é sua melhor versão enchendo a barriga dos amigos e tá sempre arranjando oportunidade pra reunir todo mundo. ele até tentou Master Chef, mas ia cair no mesmo dia do aniversário da namorada e ele já tinha prometido o bolo de morango. ele nunca foi de deixar as pessoas que ele ama de lado e se orgulha de ter encontrado um hobby que realmente ama. repete sempre que amor é o seu ingrediente secreto e adora brincar que "é o mais fácil de achar, porque tá sempre transbordando pela casa". casa essa que ele tem muito orgulho de encher com 3 gatinhos laranja, que o salvaram de uma crise de pânico na rua numa noite aleatória. esse lucas é esquecido que dói - ou pelo menos finge que é - porque repete toda hora que "3 ronronados mudaram a sua vida". tadinho, passa dificuldades pra conseguir pagar o aluguel, mas nada que seus brownies com recheio de avelã não salvem no meio das feiras de domingo no centro.

    esse aqui é diferente. ele viu no teatro uma oportunidade de expressar sentimentos guardados e grita aos 4 cantos o quanto é livre. um pouco tóxico, diz que ama ter rivais na vida - ele explica que ter alguém pra ter raiva ajuda nas peças - o problema são as cenas. ele sabe que tem a voz mais alta e usa isso pra impor sua opinião. tentou BBB por 3 anos seguidos e na quarta vez, na fase final da seleção, foi descartado por receio da produção, "capaz dele estourar e não sair bem". o lucas teve uma relação maravilhosa com um cara também chamado lucas e seus últimos 3 anos foram realmente fantásticos. infelizmente ele acabou sendo traído logo antes do carnaval e o outro ainda quis justificar que era porque queria ser poligâmico. além disso, todo dia 9 de setembro é um dia nublado. foi o dia do acidente em que ele perdeu a mãe e ele sempre mantém as tradições, mesmo que isso signifique ter que ver um familiar, apesar das brigas e da culpa que o engole.

    faço terapia pra não ter que explicar em detalhes as camadas de ansiedade envolvidas na construção dessas histórias, mas essas variantes e variantes dessas variantes já existem em algum lugar aqui dentro, não é como se elas fossem embora tão cedo. essas versões - projeções, tentações, sonhos, loucuras - são coleções de momentos e devaneios, viagens através do subconsciente. decidi cortar a história do lucas com superpoderes pra evitar retaliação nas redes.

    pensar nessas coisas muitas vezes me faz refletir que eu tenho controle sobre quase nada na minha vida. eu grito por perfeccionismos bobos mas vivo uma vida que me foi construída e dada. quais são as minhas reais escolhas? ou eu estou tomando as rédeas ou apenas com o botão de piloto automático pressionado e eu não consigo parar porque tem uma âncora em cima do botão e eu não tenho forças pra tirar. 

    essa mesma reflexão me ajuda a crer que não adianta projetar o que eu simplesmente não sou. passei os últimos meses tentando responder "o que eu realmente gosto" e não consegui escrever 2 linhas inteiras. o que é "eu" e o que é um gosto que me foi dado, um gosto socialmente construído? só o que eu sei é que não sou as versões acima e sou muito feliz por isso.

    me vejo de frente pra diferentes espelhos, daqueles distorcidos, projetando imagens diferentes onde cada "e se" se torna uma nova linha do tempo e cada reflexo salienta um lugar meu. nesse multiverso, verdades e segredos se entrelinham em reflexões. tenho muito medo de quebrá-los e sentir o azar daquele universo colidindo com o meu - a galáxia dentro de um vidro maciço de encontro com a minha mente. existe um pouquinho de cada reflexo dentro de mim e só posso devolver pra quem é meu a luz que me é direcionada.

    verdadeiramente, estar no processo de fazer o que me faz sorrir tem funcionado bastante. erro grave foi achar que se descobrir e se conhecer ia ser "um projeto pessoal que só levaria uns 2 anos". eu amo a complexidade do que eu sou e o que eu deixo de ser. amo a constante luta de entender o meu corpo e suas atividades. se fosse possível ignorar a desgraça da atualidade. amaria o desafio de viver.

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