Caixinha de Som

 Sempre fui motivo de festa. Quando sentia aquela mão familiar pegando eu e meu carregador de jeito e colocando a gente no fundo da mochila de sempre, sabia que seria motivo de alegrias, danças e muita bebida. Sempre trouxe esperança e felicidade no rosto daquele moleque. Nunca vi alguém que estivesse tão disposto a trazer ambiente aos lugares que pareciam vazios. Mesmo tocando com volume baixinho, eu preenchia o que não existia, trazia o que ele esperava e respondia ao necessário. Fui indispensável, mesmo quando eu não era motivo da visita, mesmo quando o barulho maior vinha da cama e não de dentro de mim e eu só servia pra acompanhar. O ritmo era parecido com o que eu tocava, quase sincronizado. Eu nunca tinha tocado tal playlist antes. Pelo menos posso dizer que fui um amigo íntimo.

  Infelizmente, não presenciei só coisas boas. Ele me usava até quando não queria sorrir, mesmo quando não havia motivos pra acreditar. Existe uma única lista de músicas que deixa ele pra baixo e eu sei de cor quais músicas a compõem. Ouvia de longe ele chorando, mesmo que minha música fosse tão baixa a ponto de só trazer pra ele as lembranças do que já existiu algum dia. Eu sentia o peso da emoção que ele colocava dentro de cada música minha e eu quase senti que minha bateria se ia mais rápido, de tanto que tocava pra ele nessas horas.

  Raramente fui trocado, mesmo com minha cor desbotada e com areia em alguns cantos inatingíveis. Posso dizer com clareza que faço parte da vida dele, assim como o que eu reproduzo e sabe-se lá quantas músicas eu reproduzo pra ele. Só espero que ele se encontre. Sinto ele tão perdido, como se não soubesse qual música colocar pra tocar. Como se não soubesse sorrir quando as boas tocam. Como se não soubesse chorar quando as tristes ecoam. Como se não soubesse se concentrar quando as ambientes se encontram. Como se não soubesse viver quando as favoritas se harmonizam.

  Só espero ter bateria pra ver ele saber.


Texto escrito em 28 de março de 2020.

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